Avançar para o conteúdo principal

Ganhar tempo

Quando o tio João me contou o espírito de entreajuda que existia entre os gafanhões da sua geração e das anteriores, logo me levou a reviver cenas que eu próprio tinha experimentado. Cenas que mostravam o espírito da vizinhança bastante acentuado, que se confirmava na cedência dos fósforos que se tinham esgotado, do ovo que faltava, do sal que tinha acabado, das couves para as refeições de todos os dias, que as do próprio quintal ainda não estavam à moda de apanhar, e do azeite que deixara de escorrer da garrafa. As pessoas gostavam de trabalhar em conjunto. As tarefas agrícolas eram participadas pelos familiares e vizinhos, na certeza de que no dia seguinte estariam nos terrenos de outros ou nos seus, quando chegasse a sua vez. Trabalhavam para “ganhar tempo”, como se dizia e eu tanto observei. Nas desmantadelas do milho, ao serão para juntar mais vizinhos, havia o bom gosto de brincar. Num desses serões, uns trolhas que trabalhavam na Gafanha e que tinham vindo dos lados da Murtosa, apareceram com uns lençóis pela cabeça e umas máscaras improvisadas para esconderem as suas identidades. Foi uma noite bastante divertida, cada um procurando adivinhar quem seriam os mascarados. Só muito tarde, noite adiantada, se soube quem eles eram. Nunca percebi a razão destas brincadeiras que se mantêm na minha memória. Vinham, depois, as malhadas, com o recurso ao malho. Gente possante e treinada para marcar a cadência, à força de tanto bater lá conseguia separar os grãos do milho do caroço. O mesmo acontecia com a cevada, centeio ou aveia, os cereais mais cultivados nas Gafanhas. Contudo, muito frequentemente os malhos e a força humana eram substituídos pela caminhada cadenciada das vacas dos proprietários e vizinhos sobre os cereais colocados com jeito na eira. Estou a ver os mais jovens a imaginarem o que aconteceria quando as vacas precisassem de fazer as suas necessidades! Pois foi fácil, ou não andassem os nossos avós habituados a contornar as dificuldades. Inventaram uma retrete ambulante muito prática e higiénica: ao lado da roda formada pelas vacas em marcha, na eira, postava-se, atento, um garoto, com um bacio na mão, à espera que um qualquer animal resolvesse esvaziar a tripa ou a bexiga! Porém, as manifestações comunitárias não se circunscreveram, nos primórdios da Gafanha, aos trabalhos agrícolas, mas estenderam-se, também, a outras actividades mais ou menos importantes. Recordo ainda hoje a azáfama no fabrico dos adobos nos areais esbranquiçados, junto à mata. A cal viva era transportada em carros de bois desde os locais de origem, das bandas da Bairrada, até à Gafanha. Uma vez nos areais, era queimada pela simples junção de água dum poço que ali mesmo era aberto. Juntavam-se, depois, as famílias dos nubentes e os amigos e vizinhos, com os mais entendidos no comando das operações, para amassarem a cal com a areia e para moldarem os adobos em formas previamente feitas de tábuas. Os mais experientes manejavam a colher da cal, ajeitando e apertando a massa sobre a forma de madeira, que era retirada, pouco depois, para se continuar a operação tantas vezes quantos os adobos necessários. E ali ficavam eles a secar à torreira batida pelos ventos que só os pinheiros enfrentavam corajosamente. Vinham, a seguir, as “ajuntadelas”. O mesmo rancho lá ia empilhar os adobos para que adquirissem a consistência que só o tempo podia dar. Nas vésperas da construção da casa, procedia-se à “acartadela” em carros de bois ou de vacas postos à disposição dos interessados pelos que os possuíam. Sabiam estes que tais favores eram sempre compensados, em maré semelhante, pelos que eram agora beneficiados. Depois, essa mesma gente ajudava, na hora própria, a “levantar a casa”, tarefa orientada pelo mestre ou familiar mais conhecedor. Logo que a casa ficasse coberta, e quantas vezes sem o mínimo conforto, ali se recolhia o jovem casal para iniciar vida nova sob a bênção de Deus e dos pais. Os acabamentos seguiriam quando houvesse dinheiro, porque o hábito de “ficar a dever” foi coisa que surgiu apenas nos nossos dias.
FM

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Gafanha em "Recordações de Aveiro"

Foto da Família Ribau, cedida pelo Ângelo Ribau António Gomes da Rocha Madail escreveu na revista “Aveiro e o seu Distrito”, n.º 2 de 1966, um artigo com o título de “Impressões de Aveiro recolhidas em 1871».   Cita, em determinada altura, “Recordações de Aveiro”, de Guerra Leal, que aqui transcrevo: (…)  «No seguimento d'esta estrada ha uma ponte de um só arco, por baixo da qual atravessa o canal que vai a Ilhavo, Vista Alegre, Vagos, etc., e ha tambem a ponte denominada das Cambeias, proxima à Gafanha.  É curiosa e de data pouco remota a historia d'esta povoação original, que occupa uma pequena peninsula. Era tudo areal quando das partes de Mira para alli vieram os fundadores d' aquelIa colonia agricola, que á força de trabalho e perseverança conseguiu, com o lodo e moliço da ria, transformar uma grande parte do areal em terreno productivo. Foi crescendo a população, que já hoje conta uns 200 fogos, e o que fôra esteril areal pouco a pouco se transformou em fertil e

Colónia Agrícola da Gafanha da Nazaré

Alguns subsídios para a sua história Em 1888,  inicia-se a sementeira do penisco no pinhal velho, terminando, na área da atual Gafanha da Nazaré, em 1910. Somente em 1939 ultrapassou o sítio da capela de Nossa Senhora da Boa Hora, ficando a Mata da Gafanha posteriormente ligada à Mata de Mira. (MG) A Colónia Agrícola da Gafanha da Nazaré foi inaugurada numa segunda-feira, 8 de dezembro de 1958, Dia da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal. Contudo, o processo desenvolvido até àquela data foi demorado e complexo. Aliás, a sua existência legal data de 16 de novembro de 1936, decreto-lei 27 207. Os estudos do terreno foram iniciados pela Junta de Colonização Interna em 1937, onde se salientaram as «condições especiais de localização, vias de comunicação e características agrológicas», como se lê em “O Ilhavense”, que relata o dia festivo da inauguração. O projeto foi elaborado em 1942 e, após derrube da mata em 1947, começaram as obras no ano seguinte. Terraplanagens,

1.º Batizado

No livro dos assentos dos batizados realizados na Gafanha da Nazaré, obviamente depois da criação da paróquia, consta, como n.º 1, o nome de Maria, sem qualquer outra anotação no corpo da primeira página. Porém, na margem esquerda, debaixo do nome referido, tem a informação de que faleceu a 28-11-1910. Nada mais se sabe. O que se sabe e foi dado por adquirido é que o primeiro batizado, celebrado pelo nosso primeiro prior, Pe. João Ferreira Sardo, no dia 11 de setembro de 1910, foi Alexandrina Cordeiro. Admitimos que o nosso primeiro prior tomou posse como pároco no dia 10 de setembro de 1910, data que o Pe. João Vieira Rezende terá considerado como o da institucionalização da paróquia, criada por decreto do Bispo de Coimbra em 31 de agosto do referido ano. Diz assim o assento: «Na Capella da Cale da Villa, deste logar da Gafanha e freguesia de Nossa Senhora de Nazareth, do mesmo logar servindo provisoriamente de Egreja parochial da freguesia de Nossa Senhora de Nazareth, concelho d’Ilh