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Tempos de Guerra: A boroa para fazer sopas de café

::::Da minha meninice recordo os dramas da segunda guerra mundial, também chamada guerra de 1939 – 1945, período durante a qual ela decorreu. Portugal ficou na chamada posição neutral, ora negociando com uns ora com outros. Não entrámos na guerra com armas e soldados, mas sofremos as consequências que uma qualquer guerra provoca nas sociedades.
Era eu menino, mas já sabia que por causa dela havia fome entre as camadas populacionais mais pobres. Das classes consideradas mais baixas, sob o ponto de vista social, os lavradores eram, apesar de tudo, os que menos fome sofriam, mas nem assim deixavam a situação de vida modestíssima, andando, normalmente, durante o dia-a-dia de trabalho nos campos, descalços e pobremente vestidos. Fato de fazenda e bem passado a ferro, só para ir à missa, que logo era despido e arrumado, porque tinha de durar anos e anos.
As pessoas sem lavoura, que eram muitas nas Gafanhas, tinham de comprar tudo o que se comia no dia-a-dia, nomeadamente a boroa, as batatas, as couves, o peixe e pouco mais. Havia, é certo, quem oferecesse as sobras do que a terra dava, em troca, frequentemente, de pequenos serviços, mas compras tinham sempre que ser feitas, à mediada das magras bolsas. Daí a fome que apoquentava muitas famílias, obrigando-as a ginásticas imaginativas nas modestas cozinhas, para enganar a barriga, como amiúde se dizia.
No tempo da guerra, a mercearia que se vendia nas tabernas, estabelecimentos onde se mercava de tudo, era racionada. Cada família tinha direito, conforme o agregado, a determinadas senhas, mediante as quais poderia adquirir o que lhes correspondia. E não se podia fugir disso.
Um dia, o João, vizinho mais velho do que eu, perguntou-me se não queria ir com ele à Barra, à padaria que havia ao lado do Farol, para comprar boroa. A viagem era aliciante, porque muito raramente nos afastávamos de casa. Com a autorização de minha mãe, lá o acompanhei.
Atravessámos a velha ponte de madeira, que ligava o Forte à Barra, e seguimos apressados, porque o João sabia bem que não era chegar e comprar. Tínhamos de esperar numa fila a nossa vez e se não fôssemos lestos, o meu vizinho corria o risco de ficar sem boroa.
Chegámos e a fila estava longa. Saía da padaria e prolongava-se pelo passeio lateral. A fila não era singela, mas compacta, o que levava a responder ao “quem é a seguir?” a dois ou três balconistas, patrão e empregados. Outro patrão andava de porta em porta e vender pão de trigo, numa bicicleta com cesto, de vime sem casca, de duas abas, que pendiam para cada lado do porta-bagagens.
À medida que nos aproximávamos do balcão, começámos a ouvir, com alguma insistência, as recomendações dos atendedores, ditadas maquinalmente, “leve menos, que a boroa não chega para toda a gente”. Mas todos atiravam, receosos, que havia em casa muitas bocas a comer, e nem sempre se via outra coisa na mesa, para além da boroa, que se tragava com café, que mais não era do que água tingida com cevada torrada moída.
Quando o meu amigo chegou ao balcão, entrou no magote de gente que protestava. Algumas mulheres até choravam. A boroa tinha acabado. “Que vou eu agora dar aos meus filhos?” – perguntava uma. Outras retiravam-se, em jeito de quem quer ir a outra padaria. O meu amigo ficou. Deixou que todos saíssem e, delicadamente, disse para o dono da padaria: “Venda-me, por favor, as migalhas!”
O padeiro varreu as migalhinhas, que restavam do partir da boroa na bancada de mármore, para um canto, com uma vassourinhas de giestas, meteu-as na saca de trapos com uma pá do lixo de folha, pesou-as e vendeu-as como se fosse um bocado do pão mais comido por estas bandas. O meu vizinho comentou-me satisfeito: “É a mesma coisa; já não é preciso esmigalhar a boroa para fazer sopas de café.”

Fernando Martins
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